9.15.2013

Ensaio sobre as relações 2 - Fernanda Haje

A alcunha de fraternas normalmente se dá nas ligações sanguíneas, mas nossas ligações covalentes provaram ao longo dos anos, que identificamos muitos mais pares do que qualquer característica genética. Tanto que nossa amizade foi motivo de tormento ao brio daquele de mesmo cognome, achávamos aquela suposição curiosamente engraçada, pois sabíamos, mesmo silenciosamente, que nossa relação sempre esteve fadada a irmandade da tradição fraternal, se unindo para colecionar gotas de alegria, camaradagem, contos e bebedeiras. Talvez, pelo simples fato de termos tido conexão instantânea e sermos amigas de infância, mesmo que a gente tenha se conhecido com vinte e poucos anos.
O tempo que vivemos é um momento difícil para os que ousam sonhar, mas quando chega a hora, é preciso saltar sem hesitar e buscar os meios para atingir a felicidade. Ela chega sorrateira e simples, como no sorriso inocente dos seus rebentos, ou no café da manhã reforçado, tão cheio de gordice, que chegava a assustar a Angel. A verdade é que naquele tempo podíamos confiar no nosso metabolismo e foi delicioso saborear nossa fase de glutonas com toda a pompa dionisíaca. Que falta faz esse tempo de tranquilidade com a silhueta, quando a preocupação com as calorias não fazia parte do nosso cotidiano.
Foi no início do novo milênio que nossas vidas se cruzaram. De pronto, nossa faceta suburbana nos colocou mais perto geograficamente, daí o trem da alegria foi pedindo passagem e colecionando momentos singulares e inesquecíveis; como as tardes de diversão garantida, a comilança abundante, os esmaltes extravagantes, sua necessidade constante de estar mais próxima à Iemanjá e banhar-se nas águas do mar, também nos renderam tardes leves e divertidas, muitas vezes, regadas a suco de cevada e riso solto. Não ficam atrás também nossas aventuras automobilísticas, minhas altercações matinais com minha progenitora, a ira do taxista também ficará para sempre na memória. Contudo, o onipresente era mesmo muita cantoria, especialmente quando ouvíamos You Oughta Know ou Try a little tenderness. Nós sempre fizemos questão de utilizar toda a nossa potência vocal, artística e sem noção. Diversão pura, simples e garantida. Não podemos esquecer também, da minha incrível capacidade de ser planta e o fato de sempre ter me identificado com seu lado ‘João Grandão’ de ser.
Nosso cotidiano trabalhando lado a lado foi célere e mesmo falando o idioma da rainha de forma a dar orgulho na mamãe, chegar à terra de São Patrício foi um choque cultural e meteorológico. Ainda assim, não esmorecestes e fora até a ilha celta me visitar durante a comemoração do meu aniversário, e mais uma vez criarmos memórias incríveis, dessa vez, com os murais sectários como cenário. Os minutos que passamos juntas são sempre nobres, conseguimos de forma singular ser o melhor de nós uma para outra, não que sempre fora assim ou que tenhamos conquistado isso fácil, pois mesmo que durante a história da nossa amizade não existam momentos de peleja, existem momentos de dissonância. Durante a minha catarse pessoal, aprendemos que o silêncio pode falar quando as palavras falham. Embrenhei-me no casulo, e mesmo afastando a tudo e a todos, você se manteve ali, a espreita de uma nova possibilidade de troca. Lealdade em riste, e logo que espiei a superfície, lá te vi, de sorrisão no rosto e braços abertos. Acho que eu seria uma pessoa muito mais triste, se não tivesse você ao meu lado nessa batalha constante que é a vida. Minha amiga de fé, irmã, camarada, o que seria de mim se tivesse te perdido? Às vezes, me sinto culpada por estar tão afastada, mas com o amadurecimento, aprendi também que emoções dessa natureza não me trazem nenhum sentimento positivo, só frustração. Preferi concentrar nas coisas boas e tentar sempre potencializá-las. Sei das minhas limitações, mas sei também que posso ser cada vez melhor.
Tivemos a oportunidade de conhecer variados sítios e compartilhar experiências únicas, localidades aqui e acolá, danças típicas ou ensaiadas, de Mauá até a Irlanda, com escala na Big Apple. No retorno, praiana em cabo frio e descanso em Itaboraí. Até um castelo no povoado de Trim visitamos, Búzios também entra na lista e a última vez que tive a oportunidade de ver as torres gêmeas de pé, foi na sua companhia. Aquela foi mesmo uma viagem intensa, aproveitamos bastante e nos divertimos como sempre, a valer. E mesmo com cacófato, não pode deixar de ser mencionado, o quiche mais chique que comi na minha existência. Aquele ombro amigo da ida se fez mesmo necessário, pois tardou chegar o descanso físico desse dia de alegrias, porque realmente só com muita energia para fechar com chave de ouro. Eu sei, eu sempre fui muito animada, como diz você: um trio elétrico ambulante. Essa perpétua urgência de viver, vai ver que foi assim que destruí seu buquê.
Temos muitos causos para prosa, mas um dos meus favoritos é o da Casa da Matriz, a folia e a nossa parcela sem noção estavam no cocuruto: nossa série ritmada de improvisos e passos, o ‘problema’ técnico com a porta, o cochilo na fila do Bob’s, as batatas nadando. Sempre uma maratona de júbilo. Na última vez que estivemos juntas, eu me senti tão bem cuidada e amada, foi um transbordamento de alegrias e orgulho conhecer sua faceta mãe e seu primogênito, mas é difícil saber que ainda não sou uma tia no coração do seu rebento. No meu, sou desde antes deles existirem e tenho a certeza que quando nos encontrarmos consigo meu posto com condecorações e honrarias. Entristece-me, no entanto, perder tantas fases dessa evolução. A tecnologia ameniza, mas não existe nada como a presença, o calor humano e uma sessão de cosquinha da tia maluquinha, já diria Belinha; e a verossimilhança é verdadeira.
Nunca tivemos tendência ao consumismo e nosso senso de moda é básico, mas isso acho que é mais por sermos desprovidas da abundância capitalista. Com você aprendi a curtir os sapatos de boneca retrô, as orquídeas e amabilidade manente. E esteja certa, que eu não me esqueci que te devo um jogo de lençol, depois que meus amigos franceses não tomaram banho, mesmo após passar a manhã inteira na praia (entrando na água várias vezes), almoço no peixe, corcovado, lagoa e caipirinha. Oinc oinc!
Nossa amizade é de muita cortesia, o que não impede que sejamos brutalmente sinceras com frequência. Não há cobranças, mas sim pedidos e compreensão. Sei que não precisamos confessar uma para outra, que existe muito mais sofrimento dentro nós do que a superfície transluz, mas nem deprimidas podemos ficar. No entanto, não carece aburrinhar, pois só mesmo nos instantes de incúria é que o fenômeno episódico do contentamento chega. Sentir que genuinamente o que queremos uma para outra são coisas boas e felizes, me traz leveza e a confiança de que existe mais gente de bem por esse mundo afora. Ter uma confidente e poder expor minhas fraquezas, de alguma forma de dá mais ternura e segurança. Eu tenho capa dura, mas tenho muito medo. Medo de não ser tudo o que você pensa de mim. Medo de que a distância física e a saudade estejam fazendo motim e tomem um tempo muito grande do restante dos nossos dias nesse plano, pois a realidade é que mesmo clichê, nem tempo ou distância podem nos separar.

Eu sou grata, por ter ao meu lado nesse campo de batalha que chamamos de vida, uma guerreira xamã, pois para cruzarmos essa jornada só com magia mesmo, afinal, todas as vezes que penso em você, suas boas vibrações chegam a mim; me abraçam, acalmam, desafiam e me confortam. Peço apenas agora então, que abra seu caldeirão e crie uma poção, cheia de ação. A infusão deverá apenas adicionar um ingrediente à nossa relação: presença. Eu sinto falta dos dias que passamos juntas. Sinto falta das nossas conversas. Sinto falta do nosso riso. Sinto falta da sua irmandade. Sinto falta de você. Amo-te.